A ATL tem por objetivo congregar escritores e intelectuais de todas as vertentes, propugnar por todos os meios ao seu alcance pela difusão, resgate, promoção e conservação evolutiva da cultura, incentivando sempre a criação literária.
No dia 5 de março de 2005 às 19 horas no Auditório da Escola Liceu de Tauá “Lili Feitosa”, foi fundada a Academia Tauaense de Letras, naquele momento imortalizado 14 Cadeiras com os seus Patronos e respectivos Membros Fundadores.

sábado, 13 de outubro de 2007

OS SAPATOS VELHOS

OS SAPATOS VELHOS
Franco Feitosa *

- “Há três fins de semana que não vou à casa de mamãe. O Juninho daqui a pouco não conhece nem mais a avó! Blá-blá-blá....etc...blá-blá-blá, etc”... e a cantilena matraqueada e desafinada que começara alguns séculos atrás, ir-se-ia prolongar por mais dois ou três milênios se não fôra ela sair batendo a porta e rebocando o coitado do menino pela mão.
Quando o estrondo do fechar da porta diminuiu, pude ouvir o raivoso pisar do salto alto, o violentar da porta e as quatro tentativas de arranco do motor da camioneta.
- A camioneta!...
- Pô! Vou ficar sem a camioneta! Se pintar uma pescaria vou ter que ir no carro de passeio... Corri. Abri a porta e... vi apenas quando sumiram na esquina. Consolei-me, afinal não iria suportar outro fim de semana em casa de minha sogra. Nada de especial. Não me leve a mal. Ela seria ótima, se fosse a sua sogra, não minha! Vai falar assim na casa-do-chico, Sô! Não pára um segundo de descrever as genialidades de seu filho e as (insinua apenas) imbecilidades de seu único genro - eu. Preferível, mil vezes ficar em casa, num sábado ensolarado, curtindo uma televisãozinha.
- Ué! Esta TV ‘ tava ótima ontem, e agora não tem imagem! Mexo daqui, mexo dali... sinto cheiro de queimado e de repente, nem som nem nada. Pifou de vez. Olho o relógio, duas horas da tarde, consêrto especializado só segunda feira. Não desanimo. Abro a janela do quarto e vejo que o dia está lindo. Dourado sobre anil. Um céu de brigadeiro, a temperatura agradável, uma brisa fresca mexeu com a cortina, e então escutei o silêncio tranqüilizador que dominou minha casa. “Enfim só!”
Mil alternativas. Liguei o sistema de som... Nada. Nem mesmo uma luzinha acendeu. Acendi a luz, isto é, liguei o interruptor... Nada de luz. Telefonei para companhia de luz. Problema na linha, fornecimento interrompido por 10 ou 12 horas, provavelmente.
Bem, sempre há o que fazer. Tomar uma cervejinha bem gelad... e abrir a geladeira, descongelar a carne e ser culpado de tudo! Nunca! Melhor beber um cafezinho requentado e ler o jorna... que ficou no banco da camioneta! E adianta xingar?.. Passei as duas mãos lentamente na cabeça, comprimi as frontes enquanto me sentava no sofá com os cotovelos apoiados nos joelhos, procurando uma outra idéia de curtir o resto do dia, até que chegasse a hora de ir ao futebol.
Sempre há o que fazer! Acho que já disse isso... Não importa. Levantei-me e lembrei-me das compras que tinha feito ontem. Uma camisa, um cinto, um par de sapatos e outras bugigangas que formavam o volumoso pacote ainda sobre a cômoda no quarto de dormir. De dormir mesmo!.. Há muito me acostumei a dormir ouvindo lengalengas, broncas ou lamentações. Sou talvez o mais fiel devoto de Morfeu. Acho que por isso não me tornei alcoólatra ou viciado em tranqüilizantes. Durmo ‘pedregosamente’ - pesado e sólido. Sem roncos ou agitações... mas só sei dormir de noite... Que mudança! Nem pareço mais aquele boêmio alegre, que só via o sol quando este nascia, invadindo o boteco ou a noitada boa. Acho até que virei Inca! ‘ tô adorando o sol e a luz... O que o casamento não fizer, nem a peste negra faz.
É, chega de pensar bobagens... Vamos arrumar as coisas em seus lugares...
Abri o pacote. Tirei a camisa da caixa, e pacientemente retirei todos os alfinetes, plástico do colarinho, etiquetas gomadas com código e preço, papelão de suporte, e toda a parafernália que acompanha uma camisa comprada feita. Terminado o cerimonial, voltei-me para os sapatos... Bonitos! Um pouco incômodos, mas bonitos. Estava mesmo precisando. Abaixei-me, abri a sapateira e com uma só mão tirei meus sapatos velhos da prateleira enquanto com um gemido e comprimindo as costas com a mão livre, levantei-me.
Instintivamente olhei para os velhos sapatos, prestes a serem atirados no latão de lixo. Hoje deformados, de cor indefinida e brilho opaco, nem de longe faziam lembrar sua elegância marrom-clara de dez anos atrás. Dez anos! Como eles duraram! Também..., raramente usava sapatos sociais, principalmente depois que me casara. Calçar sapato social para trabalhar onde trabalho? Ou, pior ainda, ir para a casa da sogra?... Lá vou eu de novo! Chega de pensar bobagem!
Peguei os sapatos velhos, abri o latão de lixo, dei uma olhada nos velhos heróis de couro - Puro cromo alemão! - e parei. O pensamento me transportou para aquele dia, dez anos atrás. Que dia lindo! Quanta esperança em um só dia. Lembro-me até do jeito do vendedor, na sapataria. Todo respeitoso e solícito. Era o par de sapatos mais caro da loja. Acabara de chegar da Europa. Sóbrio, elegante, distinto. Exatamente o que eu precisava para aquele dia. Calçou meu pé como uma luva. Modelo fino, arqueado, cor clara e uniforme, a perfeita combinação para as meias finas e discretas que também comprara. Tudo elegante...
Meus olhos se encheram de brilho, e meu coração vibrou de alegria nostálgica de quem relembra uma coisa boa (Haec oleim momenisse juvabit, de Ovídio). Lembro-me bem. Calças, camisa social, cinto, meias, tudo novo! Tudo tão bonito, como tudo foi naquele dia memorável. Lembro-me bem quando os calcei, vesti o paletó e fui para... para...
PS. Não vou terminar, pois acho que você também já comprou um par de sapatos novos para...

* O acadêmico Franco Feitosa ocupa a cadeira 21 da Academia Tauaense de Letras.

*Conto inédito do professor Francisco Franco Feitosa Teles, escrito em Minas Gerais, no ano de 1982, quando este pertencia à Associação Profissional dos Escritores Mineiros.

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